f:Fabrício Gonçalves Live

00:00
  • 레벨 1
  • 서포터 0
Fragmentos que procuram refletir (ou refratar?) os estilhaços de um rosto:


"Inscrição sobre minha porta:
Habito em minha própria morada,
Jamais imitei alguém,
Troço de todos os mestres
que nunca se riram de si."

- Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), in: "A Gaia Ciência" (Die Fröhliche Wissenschaft - 1882)


"Na funda transparência desses mares,
na grave inquietação, junto ao abismo,
procuras sempre, e em todos os lugares,
a sompra do teu próprio nomadismo."

- Marco Lucchesi, 'A Se Stesso' (trecho), in: "Alma Venus" (2000)

"638. O andarilho. - Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra - e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do portão - e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, no solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: - eles buscam a 'filosofia da manhã'. "

- Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900), “Capítulo nono – um homem a sós consigo” em “Humano, demasiado humano” (Menschliches, Allzumenschliches - 1878), editora Companhia das Letras, tradução do original em Alemão por Paulo César de Souza.

"Fui atrás das origens, o que me alienou de todas as venerações. E tudo ao redor se tornou solitário e estranho para mim. Mas, por fim, do ser do próprio mistério, rebentou de novo o venerando mesmo. E eis que nasceu para mim a árvore do futuro. Agora fico sentado em sua sombra."

-Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), "Anotação para o 'Zarathustra' do outono de 1883", citada e traduzida pelo Prof. Emmanuel Carneiro Leão em seu ensaio "Aristóteles e As Questões da Arte"

240. À beira-mar. - Não tenho desejos de construir uma casa (e isto mesmo contribui para a minha felicidade de não ser proprietário!). Mas se a isso fosse forçado, desejaria, tal como certos romanos, construí-la quase no mar; agradar-me-ia ter com este belo monstro alguns segredos em comum.

- Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), in: "A Gaia Ciência" (Die Fröhliche Wissenschaft - 1882), Livro Segundo.

"(...) Trinta e três anos, e não conheço a eternidade. Sinto a nostalgia da forma e a inquietação do tempo abrindo as suas feridas. Continuo buscando, e já não sei exatamente o que me espera. Não sou trezentos. Não sou trezentos e cinqüenta. Mas o coração pode se partir em mil pedaços. Tenho abismos. Mas, quando chegar a Ocasião - imagino o azul da manhã, o rosto do anjo e o perfume da latada - hei de gritar a plenos pulmões. Já não vou ter mais saudades do futuro. E todavia quero sentir-me prisioneiro de um nomadismo absoluto. Pois não espero encontrar o azul, o rosto e o perfume. Se esperasse, não havia de buscar. Quero apenas a distância..."

- Marco Lucchesi (1963-), "Moradas", in: "Saudades do Paraíso" (1997)

ELOGIO DA DISTÂNCIA

Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

- Paul Celan, in:"Papoila e Memória", tradução do original em Alemão por João Barrento e Y.K. Centeno


"Uma coisa só é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar."

- Rainer Maria Rilke (1875 - 1926), in: "Cartas a um jovem poeta" (Briefe an einen jungen Dichter - 1929, publicação póstuma)


"579. Inaptidão para o partido. - Quem pensa muito não é apto para ser homem de partido: seu pensamento atravessa e ultrapassa o partido rapidamente."

- Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900), “Capítulo nono – um homem a sós consigo” em “Humano, demasiado humano” (Menschliches, Allzumenschliches - 1878), editora Companhia
das Letras, tradução do original em Alemão por Paulo César de Souza.


LABERINTO
No habrá nunca una puerta. Está adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene anverso ni reverso
Ni extremo muro ni secreto centro.
No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino
Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la mañana
De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.

- Jorge Luis Borges (1899 - 1986), in: "Elogia de la sombra" (1969)

MACHINA DEI
Procuro o centro da circunferência
e as fundas dimensões de sua aurora,
de cujos raios brilha a iridescência
do álgido mistério que devora
o círculo da própria ambivalência:
não movido motor, ocaso e aurora,
causa sem causa - pura difluência
da altura solitária em que demora.
E as pontas invisíveis do compasso
circundam nossa rude compreensão,
marcando o soberano descompasso
de tanta e prodigiosa elevação -
o não poder jamais ver este lasso
abismo de amargura e de aflição.

-Marco Lucchesi (1963-), in: "Alma Vênus" (2000)


"Esforce-se para amar as suas próprias dúvidas como se cada uma delas fosse um quarto fechado, um livro escrito, uma língua estrangeira. (...) Trata-se, precisamente, de viver tudo."

- Rainer Maria Rilke (1875 - 1926), in: "Cartas a um jovem poeta" (Briefe an einen jungen Dichter - 1929, publicação póstuma)


ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se

- Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987); IN: "A Rosa do Povo" (1945)


ANTI-ELEGIA nº 2

Olho para tudo
Com o olhar ambíguo
De quem vai se despedir do mundo
Eis a última curva o último filme
Eis o último gole d’água a última mulher
Eis o último fox-blue

Já estou sentindo
As violetas crescerem sobre mim.

- Murilo Mendes


Meninas, aquelas que passam,
calçando botas de olhos negros,
nas flores de meu coração.
Meninas aquelas que pousam as lanças
no lago de minhas pupilas.
Meninas que lavam as pernas
no lago de minhas palavras.

- Vielemir Khliebnikov (1885 - 1922), tradução do original em Russo por Marco Lucchesi (1963-)


248. Livros. - Qual a importância de um livro que nem mesmo sabe nos levar para além de todos os livros?

- Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), in: "A Gaia Ciência" (Die Fröhliche Wissenschaft - 1882), Livro Segundo.


DANÇA
Dança, minha alma!
Abre a porta da biblioteca e dança
entre tantos homens tão sábios
que deixaram suas cabeças
sobre algum livro
como numa bandeja de Salomé.

São teus melhores amigos.
E todos pedem agora que dances,
porque só tu podes ainda fazer os movimentos
começados por eles.
E a beleza da dança
não se deve perder.

- Marin Sorescu (1936 - 1996), tradução do original em Romeno por Luciano Maia (1949-), in: "Razão e Coração - poemas"

"A presença da face que vem do além do mundo, mas que me empenha na fraternidade humana, não me esmaga como uma essência luminosa, que faz tremer e se faz temer."

- Emmanuel Lévinas (1906-1995), citado como epígrafe no livro "Faces da Utopia", de Marco Lucchesi


O ELEFANTE

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,

Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel.
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia,
De pluma, de algodão,
Jorra sobre o tapete, qual mito desmontado
Amanhã recomeço.

- Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), in: "A Rosa do Povo" (1945)

AL ESPEJO
¿Por qué persistes, incesante espejo?
¿Por qué duplicas, misterioso hermano,
el movimiento de mi mano?
¿Por qué en la sombra el súbito reflejo?

Eres el otro yo de que habla el griego
y acechas desde siempre. En la tersura
del agua incierta o del cristal que dura
me buscas y es inútil estar ciego.

El hecho de no verte y de saberte
te agrega horror, cosa de magia que osas
multiplicar la cifra de las cosas

que somos y que abarcan nuestra suerte.
Cuando esté muerto, copiarás a otro
y luego a otro, a otro, a otro, a otro…

- Jorge Luis Borges


SOU EU

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste!  Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!  ...

- Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

IV

Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar denro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito

-Vinicius de Moraes (1913 - 1980), "Quatro sonetos de meditação", in: "Poemas, sonetos e baladas"


"Dependo de minhas forças. Algo flutuantes. Mas posso voltá-las a meu favor. Hoje sou pedra. Amanhã, folha. Ontem, menos. Hoje, mais. Sobrevivo. Mas há que vigiar. As forças que me alimentam são as mesmas que me aterram. Medir os riscos. Superar fronteiras. Remover paisagens. E me confundir com elas.

Dependo de minhas forças. E quando as tenho, sonho decisões épicas, e mais não cuido. Mas, se me faltam, sou o último dos seres, perco-me em metáforas. Tenho-me na medida em que não me tenho. (...)"

- Marco Lucchesi (1963-), "Galut, a Terra Prometida", in: "Os Olhos do Deserto" (2000)


Deus
e a crisálida

amores
lepidópteros
habitam o amanhã

- Marco Lucchesi (1963-), in: "Sphera" (2003)